Oração ao tempo

Há um ano, no meu aniversário de trinta anos, meu amigo Alvinho ligou para mim – ele é desse tempo em que as pessoas usavam o telefone celular para telefonar. Pela conversa, Alvinho achou que eu não estava lidando muito bem com essa história de entrar nos trinta. Ele, então, que já há muito tempo cruzou essa barreira, resolveu usar toda a sua experiência e maturidade para me ajudar: chegou em minha casa com uma câmera e uma garrafa de uísque, e só foi embora quando terminamos o litro. Eis a ressaca em vídeo:

Thiago Amazonas de Melo


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Poeira nos cantos

O tempo, na maior parte do tempo,
é traiçoeiramente discreto.
Ele sabe que, de pouquinho,
contado em minutos, em segundos,
não tem maior efeito.
Então, ele passa quietinho, de leve,
flutuando no sopro das horas,
como se se dissipasse na espuma dos dias.
Mas não: ele vai se acumulando em silêncio,
como poeira nos cantos.
Nem nos damos conta da sua existência,
até que, por exemplo, decidimos reler um livro há muito guardado
e encontramos uma foto antiga, escondida entre as suas páginas amareladas.
Assim, sem aviso prévio,
o peso de dez anos cai, de uma vez só, sobre a nossa cabeça.

 

Thiago Amazonas de Melo


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Tudo sobre minha mãe e Vander Lee

A música tem um espaço enorme na minha vida, e isso, com certeza, eu não puxei da minha mãe.

Dona Aureny não é das pessoas mais musicais do mundo, por assim dizer. Ela é uma mulher muito prática. Sempre está fazendo alguma coisa concreta pelos outros. Não costuma dedicar seu tempo a essas coisas imateriais, a contemplações. Então, nunca foi de comprar discos ou frequentar shows. É incapaz de decorar uma letra inteira e de cantar afinada ou, ao menos, no mesmo ritmo que o cantor do rádio.

Por eu me relacionar tanto com a música, e ela, tão pouco, as raras conexões dela com essa arte tem muito significado para mim. É como se nos aproximasse.

Que eu tenha presenciado, a primeira ligação da minha mãe com a música não poderia nos conectar mais: era ela cantando para eu dormir. Lembro da cantiga de ninar, da letra que ela adaptava para inserir meu nome e da sensação de absoluto conforto e segurança que aquilo me causava, mas não recordo do timbre da voz dela ou da sua afinação. É que não era simplesmente eu escutando com os ouvidos a voz que saia da sua boca. Era eu, deitado nela, “escutando” com uma lateral da minha cabeça a vibração do seu colo. Era muito mais do que som, era muito mais do que música.

Dessa época até a minha adolescência, não me vem à memória qualquer relação entre minha mãe e música. Já em 2003, fomos a Foz do Iguaçu, atravessamos a fronteira com o Paraguai e trouxemos de lá um aparelho de som portátil, baratíssimo, para a cozinha de casa, mas a sua função rádio nunca funcionou direito. Então, brotaram nas coisas da minha mãe, não sei de onde, uns discos que ela começou a escutar. Acho que, pela primeira vez na vida, ela escutou música ativamente, escolhendo o que ia escutar, em vez de apenas aceitar o que tocava na rádio.

Depois de uma breve experimentação, no som da minha mãe passaram a tocar apenas dois discos: um de Padre Marcelo Rossi e um CD ao vivo de um cantor MPB/Pop, sotaque mineiro, meio choroso.
“Quem é esse cantor, mainha?”
“Vanderli.”
Quem era esse cara que eu, que escutava tanta música, não conhecia, e minha mãe, sim? Fui ver a capa do CD: Vander Lee. Achei engraçado; ele não tinha cabelo nem barba. Só as costeletas.

A partir daí, só dava Vander Lee no som da cozinha e do carro da minha mãe, seja pelo CD dele que já morava ali, seja pela Nova Brasil FM.
Então passei a conhecer razoavelmente as suas canções, que sempre me remetem à minha mãe. Minha relação com a obra de Vander Lee é indireta, por via materna.

Há exatamente um ano, quando eu soube de sua morte, fiquei triste; não exatamente por mim, mas sobretudo por minha mãe. Foi como se tivesse morrido algum primo dela, querido e distante, que eu só vi uma vez na vida, quando criança.

Não sei ao certo a dimensão da música de Vander Lee para o Brasil, mas, na república independente da casa da minha mãe, com certeza ele é o mais querido, o mais tocado.
Para mim, por ter me trazido a minha mãe para mais perto, sua música tem um lugar importantíssimo guardado ao lado das canções que ela cantava para me ninar.

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Sobre criminosos que querem ser pegos

Trabalho numa vara criminal. Essa semana me deparei com um caso de homicídio solucionado em tempo recorde. O corpo da vítima havia sido encontrado num local de difícil acesso, no meio de um matagal. Em menos de meia hora os policiais já estavam batendo à casa do suspeito. Sherlock Holmes na Polícia Civil de Pernambuco? Não. O gênio do crime deixou sua carteira de identidade próximo ao corpo.

Esse caso me lembrou de outros dois, que vi na imprensa, de bandidos que queriam ser pegos, só pode.

Mês passado, no Vale do Silício, os ladrões utilizaram a tecnologia – como não poderia deixar de ser naquela região – para facilitar o trabalho da polícia. Eles invadiram uma loja de eletrônicos e acharam que seria uma boa ideia furtar, entre outros equipamentos, uma caixa de localizadores por GPS. Os donos da loja acionaram os rastreadores e puderam informar à polícia a localização precisa dos espertalhões, que foram pegos ainda comemorando a empreitada.

O outro ladrão de que eu me lembrei foi pego mais rápido. Ele atuava no aeroporto de Sevilha, onde viu mais um grupo de passageiros distraídos e resolveu furtar a bolsa de um deles, que estava dando entrevista para alguns repórteres. O maloqueiro deu o bote e saiu correndo. Acontece que esse grupo era a equipe de atletismo dos Estados Unidos, que chegava para o mundial de 1999 com o homem mais rápido do mundo naquele momento. Maurice Greene fazia 100 metros em 9,79 segundos, mas não precisou de tudo isso para largar a entrevista e alcançar o ladrão. O coitado não sabe nem de onde veio o atropelamento que sofreu.

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Avante na estrada

Sigo firme trilhando o acostamento.
Quem me vê a cantar nem se dá conta
de que no mochilão levo lamento
e uma cruz; no meu peito, sofrimento.
É a dor quem conduz, quem me aponta
as estradas que devo percorrer,
as garrafas que tenho que beber.
Mas, carona, não pego uma qualquer.
Só vou se for um louco que vier,
pra ser salvo, pra dar e receber.

As plantas que margeiam o caminho,
algumas embelezam, outras ferem.
Ainda acompanhado, estou sozinho,
sem parente, amigo ou vizinho.
Eu não sei o que todos eles querem.
Continuo porque não tenho escolha
– é preciso plantar pra que se colha -,
mas, nas vilas e ruas por que passo,
não conheço ninguém, nenhum espaço
ou sentimento antigo que me acolha.

Vontade de voltar mais uma vez,
mas eu sei como é longo o regresso.
Nossa cidade toda se desfez,
só há a igrejinha em pé, talvez,
porque a fé é cega, nela ingresso
e peço que o passado feche a porta
pra dor que o coração não mais suporta.
Saio andando sem nem olhar pra trás,
pois, voltando, eu sei, não estarás.
Meu futuro contigo é o que importa.

Thiago Amazonas de Melo


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VÃO

Foste embora sem levar nada.
Mesmo assim, em casa, nada restou.
Falta porta para entrar.
Falta campainha, não há a quem chamar.
Falta sala para estar.
Falta TV, poltrona, rede. Falta sofá.
Falta internet, falta telefone, não há para quem ligar.

Faltam teus livros na estante,
faltam meus livros na estante.
Aliás, falta a própria estante.
Falta mesa, falta alimento,
falta teto, falta chão.

Até o vento, que cruza sem ser incomodado
o grande vão que se tornou a casa,
sopra sem ar, sem oxigenar.

Falta roupa para vestir.
Falta desejo para despir.
Falta corpo para ser.
Não há pele para afagar,
nem há órgãos para proteger.

Falta assunto para conversar.
Ainda que não faltasse, não haveria boca para falar;
tampouco, beijo para beijar.

Não há mais cama para deitar.
Mas de que serviria ela, se não há sono para dormir?,
se não há sexo para transar?, se não há amor para fazer?
Não há mais filho a se parir.

Não restou carinho para cuidar.
Esqueceram-se os planos para crescer.
Não há distância a se medir.
Não há proximidade para aquecer.

Não há tempo para contar.
Falta instante, falta estante.
Nada mais está.
Tudo era. Tudo foi.

Tudo se foi sem que tu tenhas levado nada.

Thiago Amazonas de Melo


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Fusão

Sempre que meu pai viaja, ele me traz um livro de algum escritor local. Do Uruguai, além de uma antologia poética de Mario Benedetti, ele me trouxe um CD. Estávamos em 2006, quando esse objeto ainda fazia algum sentido, quando os carros ainda tinham um espaço reservado para o CD player.

“Jorge Drexler. O cara da loja me disse que era o melhor cantautor uruguaio do momento”. O nome me soava familiar. Era aquele latino que tinha ganhado um Oscar por sua música na trilha sonora de Diários de Motocicleta. A produção do Oscar havia incluído a apresentação da música na cerimônia, mas impediu o seu compositor de executá-la, escalando Antonio Banderas e Carlos Santana para tocar uma versão bem esquisita da canção.
Em protesto, quando ganhou a estatueta, em vez de fazer um discurso de agradecimento, Jorge Drexler cantou à capela duas estrofes de sua música e “tchau”.

Quando eu fui ouvir o CD, chamado “Eco”, não conhecia outra música além da vencedora do Oscar, “Al Otro Lado del Río”. Talvez pela familiaridade, ela foi a minha primeira música preferida do disco, mas logo deu lugar a “Mi Guitarra y Vos”, que deu lugar a “Salvapantallas”, que perdeu para “Milonga del Moro Judío”… Foi me viciando numa música atrás da outra que esse álbum enterrou de vez a minha adolescência “roqueira intolerante” com o pop.

Hoje, mais de dez anos depois, só uma ou duas faixas ainda não tiveram a sua fase de minha música favorita do CD. Atualmente, eu estou viciado em “Fusión”, e queria cantar a sua letra original, mas meu uruguaio é fraco, então eu ousei escrever uma versão em português.

Procurei fazer a tradução mais direta possível, sempre que isso não prejudicasse o sentido da letra ou seu encaixe na melodia. Vejam aí.

Quase ia me esquecendo de novo: a Seu Geovane, a quem nunca agradeci, obrigado pelo presente.

 

Thiago Amazonas de Melo


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Calma

Calma,
ela não disse que não vem.
Só disse que a gente tem
que esperar um pouco mais.
E há demoras na vida que vêm para o bem.

Vou além:
se pararmos para pensar,
é exatamente ela que virá.
Que outro alguém
poderia chegar em seu lugar?
Quem?

Ninguém.

Se a mesma paixão vai chamá-la,
se o mesmo amor vai fazê-la,
se a mesma carne vai formá-la,
se os mesmos planos vão trazê-la,
quem?

É ela mesma que virá.

Thiago Amazonas de Melo


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Entrevista|Thiago Melo

DELFOS

Chama-se Thiago Melo, é do Recife, estado de Pernambuco (Brasil) e, mesmo  sem ele próprio se considerar um artista, utiliza a sua música e poesia para explorar,  afinal, o que está na base da condição humana :  a dualidade entre a verdade e a mentira, a mentira poética essencialmente, os equívocos, o tempo, a ideia de  estrada, de caminho, o ir à procura, quando a poesia está presente e o que fazer na sua ausência. Fazendo uso da voz e violão, com a parceria de amigos ou a solo, e com um forte vínculo  à estrutura basilar do MPB, partilha a sua música nas redes sociais, tal como a sua poesia que vai declamando em vídeo. Portanto, é  só apurar os ouvidos e escutar. Recentemente, desafiei-o com umas pequenas perguntas por e-mail e o meu pedido foi atendido. Sem mais demoras, passemos então ao principal – as palavras do Thiago…

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