Tudo sobre minha mãe e Vander Lee

A música tem um espaço enorme na minha vida, e isso, com certeza, eu não puxei da minha mãe.

Dona Aureny não é das pessoas mais musicais do mundo, por assim dizer. Ela é uma mulher muito prática. Sempre está fazendo alguma coisa concreta pelos outros. Não costuma dedicar seu tempo a essas coisas imateriais, a contemplações. Então, nunca foi de comprar discos ou frequentar shows. É incapaz de decorar uma letra inteira e de cantar afinada ou, ao menos, no mesmo ritmo que o cantor do rádio.

Por eu me relacionar tanto com a música, e ela, tão pouco, as raras conexões dela com essa arte tem muito significado para mim. É como se nos aproximasse.

Que eu tenha presenciado, a primeira ligação da minha mãe com a música não poderia nos conectar mais: era ela cantando para eu dormir. Lembro da cantiga de ninar, da letra que ela adaptava para inserir meu nome e da sensação de absoluto conforto e segurança que aquilo me causava, mas não recordo do timbre da voz dela ou da sua afinação. É que não era simplesmente eu escutando com os ouvidos a voz que saia da sua boca. Era eu, deitado nela, “escutando” com uma lateral da minha cabeça a vibração do seu colo. Era muito mais do que som, era muito mais do que música.

Dessa época até a minha adolescência, não me vem à memória qualquer relação entre minha mãe e música. Já em 2003, fomos a Foz do Iguaçu, atravessamos a fronteira com o Paraguai e trouxemos de lá um aparelho de som portátil, baratíssimo, para a cozinha de casa, mas a sua função rádio nunca funcionou direito. Então, brotaram nas coisas da minha mãe, não sei de onde, uns discos que ela começou a escutar. Acho que, pela primeira vez na vida, ela escutou música ativamente, escolhendo o que ia escutar, em vez de apenas aceitar o que tocava na rádio.

Depois de uma breve experimentação, no som da minha mãe passaram a tocar apenas dois discos: um de Padre Marcelo Rossi e um CD ao vivo de um cantor MPB/Pop, sotaque mineiro, meio choroso.
“Quem é esse cantor, mainha?”
“Vanderli.”
Quem era esse cara que eu, que escutava tanta música, não conhecia, e minha mãe, sim? Fui ver a capa do CD: Vander Lee. Achei engraçado; ele não tinha cabelo nem barba. Só as costeletas.

A partir daí, só dava Vander Lee no som da cozinha e do carro da minha mãe, seja pelo CD dele que já morava ali, seja pela Nova Brasil FM.
Então passei a conhecer razoavelmente as suas canções, que sempre me remetem à minha mãe. Minha relação com a obra de Vander Lee é indireta, por via materna.

Há exatamente um ano, quando eu soube de sua morte, fiquei triste; não exatamente por mim, mas sobretudo por minha mãe. Foi como se tivesse morrido algum primo dela, querido e distante, que eu só vi uma vez na vida, quando criança.

Não sei ao certo a dimensão da música de Vander Lee para o Brasil, mas, na república independente da casa da minha mãe, com certeza ele é o mais querido, o mais tocado.
Para mim, por ter me trazido a minha mãe para mais perto, sua música tem um lugar importantíssimo guardado ao lado das canções que ela cantava para me ninar.

Thiago Amazonas de Melo


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12 comentários sobre “Tudo sobre minha mãe e Vander Lee

  1. Cara, muito legal esse seu relato. Eu conheci Vander Lee de perto. fui a vários shows dele, até quando ele ainda não fazia muito sucesso nem em Belo Horizonte ainda. Era um cara super humilde, de uma delicadeza sem par. E foi assim, como diz Guimarães Rosa… morreu sem avisar. Tão de repente e tão sem avisar, que deixou-nos um buraco no peito. De verdade. Eu chorei. E sinto ainda a falta de um poeta tão caprichoso como ele. Ele mesmo escrevia a maioria das músicas que interpretava, salvo alguns clássicos e parcerias maravilhosas que fez, com Zeca Baleiro, por exemplo. É uma pena que ele tenha partido assim, tão cedo. Mas a vida segue. Obrigado por encontrar, ler e comentar meu texto. Convido-lhe a ler mais dos meus escritos em http://www.pontesdeapoio.blogspot.com. Abraço.

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